terça-feira, 9 de agosto de 2011

América Latina: Fascismo com Cara Indígena

JÚLIO DA SILVEIRA MOREIRA
ALEXANDRE CEZAR AMARAL
Advogado, membro da ABRAPO – Associação Brasileira dos Advogados do Povo

O Relatório brasileiro apresentado ao III Congresso da IAPL (Associação Internacional dos Advogados do Povo), em novembro de 2003, apontava o crescimento da crise geral do capitalismo, repercutindo na fascistização dos governos da América Latina no contexto pós 11 de setembro de 2001:

[...] o desenvolvimento da situação mundial sob a imposição de sua política [dos EUA] conduzirá, de um lado, à crise geral do sistema, e de outro, o crescimento do fascismo em todo o mundo, como forma de barrar a rebelião dos povos oprimidos e explorados. É o que já está acontecendo, de maneira acelerada, após o 11 de setembro.

No caso, a América Latina, que é a principal base do imperialismo hegemônico, se tornará então o elo mais débil da cadeia de dominação imperialista.

[...]

Neste sentido, a eleição de governos “populares” e “democráticos” em vários países como Venezuela, Peru, Equador, Chile, Argentina, Brasil, coincidiu com esta ofensiva contra-revolucionária internacional. Embora, em determinado momento, os candidatos ditos populares tenham representado uma esperança de mudança para milhões e milhões de latinos, os governos de Chaves, Toledo, Gutierrez, Lagos, Kirchner e Luis Inácio, entre outros, na verdade, têm servido aos interesses do Estados Unidos no continente, legitimando os velhos Estados reacionários [1].

Quase oito anos depois, os fatos confirmam essa análise. Especialmente, quando os governos Chávez, da Venezuela, Corrêa, do Equador, e Morales, da Bolívia, entregam militantes da luta popular à perseguição de governos implicados com a repressão mais dura e matanças massivas[2]. Vamos ao fato mais recente.

No último 1º de agosto, a FELCC (Força Especial de Luta Contra o Crime) da cidade de El Alto, Bolívia, invadiu o escritório do Centro de Capacitação Isaac Newton, onde três pessoas trabalhavam dando aulas preparatórias de Matemática, Física e Química, destruíram o local e apreenderam panfletos que falavam contra o gasolinazo (a elevação do preço da gasolina em 80% que levou a protestos populares massivos) e as transnacionais na Bolívia. Em seguida, invadiram a casa da esposa de um dos professores. Os presos são Hugo Wálter Minaya Romero e Williams Antonio Minaya Romero, Blanca Riveros Alarcón y José Antonio Cantoral Benavides, e ainda o filho de Blanca Riveros, com apenas um ano de idade. Os quatro professores são peruanos, sendo que José Antonio possui o status de refugiado e os três outros aguardavam processo em que solicitaram asilo político.

Depois de presos, foram exibidos à imprensa algemados e sob a custódia de dezenas de soldados mascarados e fortemente armados. O Ministro de Governo de Morales, Sacha Llorenti, afirmou que eles teriam ligações com o Sendero Luminoso[3], porque distribuíam panfletos contra o governo de Morales na Universidade Popular de El Alto e davam aulas visando recrutar pessoas. Rapidamente, a imprensa boliviana tratou de divulgar que a polícia havia confirmado a ligação deles com o Sendero, e que eles teriam ligação com o narcotráfico.

A pedido da APDHB (Assembléia Permanente sobre os Direitos Humanos na Bolívia), o médico Juan Reynaldo Galvez Claros examinou os detidos e constatou que eles foram torturados durante a detenção. O relatório médico é detalhado e mostra que os três homens foram feridos quando algemados, colocados capuzes em suas cabeças para lhes impedir a visão e agredidos no rosto e nas costas, restando constatadas lesões no pescoço, tórax, dorso lombar, nariz e pulsos. Em seguida, sofreram tentativas de asfixia e ameaças de morte. O médico constatou ainda que o bebê estava há 11 horas sem se alimentar, sonolento, hipoativo, desidratado e com alto processo de infecção respiratória.

As autoridades bolivianas se apressaram em armar um julgamento para expulsar os quatro para o Peru. Primeiro, o juiz que julgaria as medidas de urgência, Rafael Alcón, se declarou impedido, porque estaria inserido em uma investigação que tem o Ministro de Governo, Sacha Llorenti, como denunciante. A juíza Karina Barea assumiu o caso, e desta vez foi considerada impedida pelo próprio governo. O julgamento foi suspenso até que encontrassem um novo juiz para o caso.

Enfim, o juiz Daniel Espinar decidiu pela expulsão de Hugo, Williams, Blanca e seu filho para o Peru em até 24 horas. A decisão foi de fato cumprida, sem nenhum direito a recurso. José Antonio, que ganhou uma causa na Corte Interamericana de Direitos Humanos por perseguição do governo peruano, não poderia ser expulso porque tinha oficialmente o status de refugiado na Bolívia. Rapidamente, a Conare (Comissão Nacional de Refugiados) cassou seu status de refugiado e determinou que ele vá para outro país no prazo de 90 dias.

O advogado dos presos políticos, Franz Bustos, denunciou:

Na audiência foi demonstrado que não existem razões jurídicas para concluir que meus defendidos sejam processados pelo suposto delito de terrorismo. Lamentavelmente, estão forçando as provas e as interpretações com a única finalidade de que, não só se registre um antecedente contra aqueles grupos sociais que se pronunciem contra o governo, mas que se pretende concluir com uma determinação distorcida no âmbito judicial, para que o Executivo não seja denunciado por violação aos direitos humanos, aos refugiados políticos e aos cidadãos peruanos [4].

Tamanha foi a precipitação das forças de repressão do governo em acusar os quatro de ligação com o narcotráfico, que tiveram de voltar a atrás e mudar suas acusações, descartando essa ligação[5]. O que ficou claro, em todo momento, é que a “prova material” do delito de terrorismo foram panfletos com dizeres contra o governo de Morales e de caráter marxista.

Em todo o contexto de difamação, torturas e perseguição, o governo de Evo Morales criminaliza e tenta esmagar a dissidência política, violando frontalmente o Pacto Internacional de Direitos Civis e Polícos, do qual a Bolívia é parte, e que estabelece:

1. Ninguém poderá ser molestado por suas opiniões.

2. Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou qualquer outro meio de sua escolha.

Morales não pode nem mesmo acusar suas vítimas de serem “agentes da direita tentando desestabilizar um governo popular”, como é a estratégia de discurso dos demagogos da América Latina. Morales está perseguindo organizações que promovem seminários e discussões acadêmicas, e denunciam a violência do governo contra camponeses pobres na Bolívia, a situação decadente do sistema de saúde, a corrupção dos dirigentes sindicais e as suas políticas que servem aos interesses dos ricos e das transnacionais, que exploram os recursos naturais da Bolívia.

Ademais, o Estado “Plurinacional” da Bolívia mostra que nem mesmo respeita as nacionalidades e o multiculturalismo em que se baseia seu discurso. As fronteiras de Chile, Bolívia, Peru e Equador (objeto de disputa entre esses países) foi traçada pela coroa espanhola, sem considerar as especificidades das etnias existentes nesses países. As duas principais (quéchuas e aymaras), sempre compartilharam o mesmo território, e transitando entre os diversos países. Assim, é um absurdo impedir que esses povos, sobretudo quando em confronto com as elites de seus países (as mesmas da época da colonização, apesar do discurso “indigenista” de Morales) circulem em seus territórios ancestrais. A contar pelo discurso “plurinacional”, os presos políticos de Morales deveriam ter livre trânsito nos Andes, independentemente do país, por tratar-se de seu território ancestral.

Quaisquer que sejam os adjetivos que se reputem ao governo de Morales, são os fatos que mostram seu caráter sanguinário e fascista, desejoso de esmagar a todos que se levantem contra suas ações, sem respeitar sequer os procedimentos jurídicos de seu país e assegurados pelo Direito Internacional.

Hugo Wálter Minaya Romero, Williams Antonio Minaya Romero, Blanca Riveros Alarcón e seu filho de apenas 1 ano de idade foram entregues à perseguição do governo peruano, sob a pecha de “senderistas”. De acordo com a organização FDCL, de Berlim, a perspectiva é a pior, já que “os juízes peruanos seguem quase sempre as consignas do poder político” e que Ollanta Humala “não representa nenhuma garantia de mudança para os perseguidos políticos no Peru”, onde ainda está vigente a legislação anti-terror do governo de Fujimori, quando dezenas de milhares de pessoas sofreram encarceramento medieval na década de 90 por serem identificados com organizações chamadas de terroristas [6].

Os fatos comprovam que nada muda no “Capitalismo Andino-Amazônico” de Morales ou nos recentes governos populistas da América Latina. O Estado não muda seu caráter de semi-colônia, as classes dominantes se perpetuam no poder e gerentes oportunistas assumem a tarefa da repressão, respaldados por uma plêiade de cúmplices e covardes que se apóiam em sua verborragia de “esquerda” sem nenhuma verificação na prática.

Notas:


[1] Relatório disponível em .

[2] Em abril de 2011, o jornalista sueco de origem colombiana, Joaquín Pérez Becerra, diretor da Agência de Notícias Nova Colômbia (ANNCOL), exilado na Suécia, foi sequestrado em Caracas e enviado por Chávez para o fascista Uribe, em apenas 2 dias. Em junho de 2011, Rafael Correa, presidente do Equador, prendeu e entregou ao Estado colombiano Fabio Ramírez, dirigente do grupo Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) e sua companheira, Yaneci Hoyos Alarcón.

[3] Nome dado ao Partido Comunista do Peru (Maoísta), que iniciou suas atividades em 1980.

[4] Entrevista concedida ao jornal boliviano El Diário e disponível em .

[5] Em pronunciamento público constante do ofício 253/APDHB/11, de 02/08/2011, afirma a APDHB: “Ontem, 1º de agosto, a polícia invadiu uma casa na cidade de El Alto, perto da Universidade Pública de El Alto, porque tinha as informações de que ali poderia encontrar drogas ou insumos para a fabricação de drogas. Grande foi sua surpresa quando perceberam que estavam mal informados, porque não havia qualquer coisa que envolvesse seus ocupantes com tráfico de drogas. Dada esta circunstância, em vez de pedir desculpas pelo abuso cometido, começaram a inventar o crime de terrorismo, prendendo os ocupantes do imóvel e acusando-lhes de terrorismo.”

[6] A nota da organização FDCL-Berlim foi publicada no informativo virtual Rebelión em 06/08/2011 e se encontra disponível em .

Fonte: Revista Crítica do Direito - http://www.criticadodireito.com.br/edicao-atual-numero-1-volume-16/america-latina-fascismo-com-cara-indigena

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